segunda-feira, 14 de abril de 2014

é nóis

As pessoas têm me perguntado por que eu troquei a escola pela rua. A resposta me parece tão cristalina que eu tenho dificuldade de verbalizar... sou assim mesmo. Então resolvi escrever sobre o meu novo trabalho e sobre tudo o que vier à cabeça agora; peço desculpas de antemão se ficar muito chato, pois faz muito tempo que não escrevo nada aqui e eu acho que nem me lembro mais como se escreve algo que não seja relatório de trabalho ou prova da faculdade. Fique à vontade para deixar de ler agora.
Eu estava gostando muito de trabalhar com as crianças. Mas não estava gostando de trabalhar em escola. Trabalhei por cinco meses em uma das escolas mais moderninhas do Brasil, super prafrentex mesmo, de esquerda, cheia das arte e tal, uma beleza de escola caríssima para onde as elites intelectuais paulistanas mandam seus filhos. Foi uma experiência bastante enriquecedora para mim, apesar das condições ruins de trabalho e do salário de estagiária, mas o que me fez sair de lá foi a constante cobrança de tirania que recaía sobre meus ombros. O tempo inteiro eu fui pressionada a ser mais "brava", como se a culpa de aquelas crianças ricas acharem que o mundo todo estava ali para servi-las fosse minha. Não deu. No começo deste ano, eu fui para uma escola mais tradicional, um colégio judaico. Lá, pasmem, a cobrança de tirania era muito menor, e eu finalmente comecei a me sentir uma profissional um pouco mais respeitável, que não precisava gritar feito louca para conseguir um pouco de atenção das crianças. Mas, assim como na escola precedente, a riqueza absurda daquelas crianças me congelava por dentro, sobretudo nos momentos em que elas externalizavam sua concepção de mundo daquele jeito puro que só as crianças sabem fazer. Lembro de uma vez em que conversava com um menino sobre uma atitude que ele teve em sala (jogou os cadernos da colega no chão e pisou em cima) e sobre a importância do respeito a todas as pessoas dentro da escola, aos funcionários, às professoras, à colega... ele me olhou furioso e disse que o pai dele não pagava a escola para ele ouvir bronca. Quando eu respondi que o dinheiro que o pai dele pagava não lhe dava o direito de humilhar as pessoas, ele respondeu: "então quanto que ele tem que pagar para eu ter esse direito?". Naturalmente, contei a esse menino a verdade inconveniente de que o dinheiro do pai dele não poderia comprar tudo, e a informação foi de tal modo chocante que seus olhos se encheram de lágrimas e ele ficou silencioso por um bom tempo.
Todas esses episódios foram me deixando triste com a escola, com suas relações sempre tão verticais, com a tirania presente em cada momento em que o limite entre o querer do aluno e a imposição da professora se tornava mais conflituoso. Aí eu fui me questionando se estava na profissão certa... porque não bastava gostar de criança, afinal, era preciso alguma coisa que eu não sabia onde encontrar, e se essa coisa fosse o "ficar brava" com as peraltices da criançada, certamente a professora Carol não tinha conserto.
Acontece que eu não tive tempo de dar mais uma chance para a escola. Fui chamada em um concurso prestado há mais de um ano, um concurso de educadora social, e assumi o cargo. Deixei a escola para as guerreiras com as quais tanto aprendi nesses meses de docência, que levam verdadeiro "jeito para a coisa" e conseguem se fazer ouvir apenas com um olhar. Minha gratidão a todas e que Deus abençoe sempre as crianças com as quais eu tive alegria de trabalhar; suas risadas escandalosas e suas declarações espontâneas de amor são bálsamo para minha vida inteira. 
Eu tinha vaga ideia do trabalho que desenvolveria como educadora social, mas algo me dizia que agora, sim, eu conseguiria trabalhar com um pouco mais de autonomia as minhas ideias sobre emancipação pela educação e trabalho com comunidades (desculpem se eu viajo, sonhar é fundamental). E eu não trabalharia para a elite!! Puxa vida, ganhar chocolate belga, suíço, Kopenhagen, perfume importado e tudo o mais era bacana, o salário também não era nada mal, mas a briga aqui dentro de mim estava grande demais. Sinceramente, tal qual uma panela de pressão defeituosa, eu era um colapso anunciado. 
Bom, então chegamos ao dia de hoje. Há mais ou menos um mês eu trabalho com pessoas que se encontram em situação de rua, desenvolvendo com elas oficinas, rodas de conversa, falando muito com elas sobre a vida e aprendendo imensamente. Eu tenho tanta coisa para contar, eu já cresci tanto. Juro pra vocês. Mesmo sendo só um mês. E eu confesso que tenho sofrido muito, também. Porque amo muito o ser humano, e não é fácil amar o ser humano nesse mundo de merda em que vivemos. Mas o importante é que sinto que meu trabalho tem sido um pouco útil e fico radiante quando algum dos meus novos amigos chega todo bonachão perguntando qual é a boa do dia, ou quando outro chega pela primeira vez, acanhado, e participa dos debates meio receoso, e participa no outro dia mais falante, e chama seus outros amigos, e vai com a gente assistir a um espetáculo de dança... mesmo sendo aquele ambiente tão opressor para ele, mesmo assim! Ele vai! A gente vai com ele. E é bonito quando tocam violão e lembram de histórias passadas, um até chorando (!) pois fazia seis anos que não colocava a mão em um violão, e tocar violão é reviver, e reviver dói, apesar de ser bom. Conversamos sobre temas polêmicos e eu percebo que a rua deixa as pessoas com a mente mais aberta que a escola. É meio louco. Falar de homofobia e violência contra a mulher rende debates muito enriquecedores que eu não tive espaço para fazer em sala de aula, infelizmente. Provavelmente porque agora trabalho com pessoas adultas. Provavelmente porque muitas delas sentem na pele o peso de ser travesti, o peso de ser mulher na rua e ter seu corpo violentado o tempo inteiro.
Tenho sido lá no trabalho, pelo menos neste primeiro momento, alguém com quem se pode desabafar. Não sei explicar. Talvez seja a minha idade, meu sincero interesse por suas histórias ou a dificuldade dos moradores em conceber o que faz uma educadora social (às vezes é obscuro até para mim), mas todos me falam de suas vidas com muita naturalidade. Da carga pesada que carregam desde muito pequenos. Das mães espancadas, dos pais estupradores, das mães que abandonaram, das irmãs violentadas, dos abrigos tenebrosos, da FEBEM, da cadeia, da polícia violenta, do frio da rua, da alegria da rua, do crack, da cocaína e do álcool, dos amantes... da solidão.
A autoestima das pessoas em situação de rua, não é difícil adivinhar, é bem baixa. Todos os dias um desconfiado vem me perguntar se eu estou gostando do trabalho ou se eu vou deixá-los. Ah, se ele soubesse o quanto é necessário para mim estar ali, trabalhar ali, aprender com eles. Aprender quando vejo o milagre da multiplicação das marmitex, 11 alimentam 30, aprender a compartilhar e a resistir. Aprender com esses corações que já sofreram muito mais que o meu e ainda têm sempre uma palavra de carinho, um desenho, um poema ou uma piada para me fazer sorrir, sonolenta e esperançosa que sou, às 8h da manhã.